Lembranças de um Escritor, um Botequim e uma Ilha

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Lembrar depois dos 30 anos é como montar um quebra-cabeça. As recordações vem esparsas e  vão se encaixando até formar uma lembrança. A narrativa não surge completa, ela precisa ser remendada entre um quadro e outro. Assemelha-se a uma história em quadrinho, porém mais esparsa, com maiores intervalos entre um quadro e outro.

Pois bem, ao recordar de João Ubaldo, a primeira imagem é dele próprio há cerca de quinze anos atrás. O escritor ia todos os dias para um antigo botequim na esquina da Dias Ferreira com a Venâncio Flores com bancos e mesas na calçada. Hoje, ele é mais um Belmonte cosmetizado. Ao chegar lá, por volta das 10h da manhã, pedia uma dose, se não estou enganado de whisky, virava, e retornava rapidamente à sua residência. Comentava-se que sua família, ou seu médico, ou alguém que fosse, reprovava o hábito da bebida, sendo assim limitava sua ida ao boteco neste horário.

Aos domingos, invariavelmente, uma coluna sua se destacava no Jornal O Globo próximo ao editorial. Geralmente narrava uma conversa de bar entre colegas sobre alguma questão política ou corriqueira. Nunca cheguei a flagrar um diálogo deste gênero, apenas a cena furtiva da virada do copo. Quiçá reservava uma mesa em outro botequim onde encontrava tais personagens e se alongava além de uma dose.De todo o modo, há de se lembrar que um escritor as vezes monta suas próprias experiência, misturando lembranças anteriores criando uma argamassa de ficção e assentando tijolo por tijolo de uma nova história.

Embora suas crônicas deste período fossem somente uma pálida lembrança daquelas que o alçaram a em tempos anteriores, João Ubaldo foi um habilidoso cronista. Antes mesmo de suas aventuras bem sucedidas nos romances, escrevia crônicas sobre sua mítica Itaparica para os jornais.  Dela, surgiram tantos personagens que uma hora culminaram em um romance inteiro de suas mais de 600 páginas, mas antes dele florescer, foram cultivados em crônicas e histórias corriqueiras da ilha. Pouco a pouco foram maturando até se desvencilharem em romance.

Deste rico manacial de histórias, surge, segundo minha memória, uma das melhores coletâneas de crônicas de nossa literatura: Arte e Ciência de Roubar Galinha. A opinião, no caso, é formada por recordações breves de como senti-me ao ler o livro. Agora mesmo, não consegui recordar sequer de uma historinha, que seja, da publicação. O título inclusive só foi resgatado por uma pesquisa no Google, sabia que nele havia algo relacionado a uma galinha.  Lembro,  porém, da viagem que fiz para a localidade. De algum modo, os livros permanecem pela extensão de sua história em nossa própria narrativa.

Tento estabelecer a ordem cronológica da viagem. Não estou certo se foi antes, durante ou depois da leitura do livro. O Ferry Boat, como orgulhosamente era chamada a embarcação, saía do porto da Cidade Baixa, um local fétido similar as antigas rodoviárias. Já na ilha quedei-me numa praia chamada Ponta de Areia. Acampei na areia mesmo, junto a uma argentina que namorava na época.  A população nos auxiliava bem, sempre simpática e com o esoterismo e uma serenidade apropriada a um baiano ilhado em Itaparica.  Todos os quiosques tocavam a mesma música, que não me sai da cabeça até hoje: “Diz para onde você vai, que eu vou varrendo…”. Entusiasmei-me quando achei um quiosque que não repetia o mesmo gosto dos demais. Tocava em alto e bom som o Rock de Raul Seixas. Já no segundo dia percebi que tinha apenas um cd do rockeiro, que repetia indefinidamente, algo que tirou o prazer inicial. O axé serviu para datar o período precisamente, era 1998.

De todo o modo a viagem, e suas esparsas recordações, não têm maior serventia literária do que confirmar a mística que ainda permanecia nos idos anos 90. Revisitei algumas crônicas pela internet, por coincidência as que li misturavam pessoas, plantas e bichos de tal modo que Itaparica, a partir de sua diversidade, sobressai como personagem principal. A coletânea, aliás, parece ter este objetivo. Os jegues exportados para o Japão, o Baiacu que faz a moqueca, os cachorros de sua casa e as galinhas que eram roubadas por Lelé, pseudônimo criado pelo autor para preservar a identidade do dito cujo fora de sua comarca .

O livro também guarda referências do universo  absolutamente real  e fantástico que João Ubaldo Ribeiro retratou em seu romance mais famoso, Viva o Povo Brasileiro, porém mantendo o tom jocoso e despretensioso de suas crônicas. Em uma de suas crônicas narra as inúmeras invasões estrangeiras na Ilha, inclusive as mais recentes, pelos inúmeros turistas e estrangeiros que ocupam e se apropriam da Bahia e do Brasil em geral.

Gosto de acreditar que nós escritores, artistas em geral, somos lembrados pelo que escrevemos de melhor. As crônicas de botequim de João Ubaldo, muitas de qualidade sem dúvida , com  passagens ou desfechos divertidos, servem apenas de pano de fundo para lembrar o Ser Humano de verdade, que conheci na General Venâncio Flores, enquanto que o escritor permanecerá em minha memória pela sua arte e ciência de retratar um vilarejo inteiro com seus ladrões de galinhas, jegues e defensores de uma ilha e de uma nação inteira contra piratas e forasteiros de outras terras. Seja em três páginas ou em 600, contraste do cronista despretensioso e do romancista missionário, que buscava reverberar na memória de outros povos a realidade fantástica do Brasil e da Bahia em seu mais extenso romance, Viva o Povo Brasileiro.

Parafraseando João Ubaldo, a alternativa da velhice é a morte, sem dúvida, mas a sua escrita permanece, sobretudo sua melhor, como uma imortalidade possível. Ficará guardada na lembrança em uma ilha da paisagem geográfica da literatura brasileira.

Bogado Lins é escritor, roteirista e articulador do Literatura Cotidiana

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