100 contos em um… ano

Para quem pretende viver a literatura no cotidiano, tenho uma confissão a fazer. Alonguei-me durante mais de um ano numa coletânea que supostamente reuniria os cem melhores contos brasileiros. De um conto por dia, a leitura começou a minguar, até diminuir a velocidade e esparsar em longas páginas por semanas a fio. De repente, um ano se passou e nada de finalizar a obra. Devo admitir que não estamos falando de um livrinho qualquer, trata-se de 616 páginas que nem sempre são triviais. Mesmo assim, fica o questionamento, tornei-me preguiçoso? Nada de 40 mil páginas por dia que já alcançaram por aí, bastaria míseras 50 diárias que já estava excelente. Mas fiquei nesta conta, as vezes 5, outras 3, míseras 1, e até dias que nenhuminha sequer foi folheada.

E o proveito? Se pude apreciar novamente clássicos e outros contistas até então desconhecidos, ficou uma pontinha de decepção. Duvidei um pouco se a seleção realmente reunia o que há de melhor, o que acabou acrescentando alguns dias, semanas, meses na apreciação do material. Uma certa preguiça de seguir adiante.

Antes de tudo, gostaria de eximir culpados. Uma curadoria desse nível de responsabilidade sempre está propensa a injustiças. Creio que Ítalo, nosso hercúleo organizador, ao privilegiar a diversidade de autores, acabou deixando o que verdadeiramente era melhor, mas que eventualmente repetiria certos artilheiros indomáveis, como Clarice Lispector, por exemplo, que de fato foi a campeã, mas também outros exímios contistas como Lima Barreto, João do Rio, Murilo Rubião, Caio Fernando Abreu, Rubem Fonseca, Guimarães Rosa, dentre outros. E, sem dúvida, haveria outro leitor mais crítico que reclamaria justamente disso.

Por outro lado, um questionamento que surgiu foi justamente o quanto grande parte dos contos me soou datado. Será que alguns contos fazem tanto sentido hoje em dia? Será que a perspectiva do século XXI mudou a nossa apreciação da literatura? Talvez fossem os melhores contos quando foram selecionados, mas será que o tempo os envelheceu? O tempo muda a apreciação dos objetos e das obras. Também tornou algumas questões menos relevantes. Talvez pela representatividade, talvez pela busca de alguma mensagem realmente relevante, notadamente esse perfil classe média, intelectual e funcionário público ou jornalista de escritor que se repete ao longo da história da nossa literatura acabou nos atrapalhando. Será que estamos aquém da qualidade literária mundial? Será que um Borges faria menos sentido no Brasil? Talvez, precisamos de alguém que possa oferecer aquilo que seja só nosso, como Guimarães Rosas, que conseguiu decifrar e traduzir universos que de alguma forma transcenderam sua origem. Por outro lado, que crítico não apontaria o bruxo do Cosme Velho como universal? Sim e não, precisamos de mais escritores com origens e diversidades, ou ao menos que busque retratá-las com precisão, mas também nos faltou alguns outros que almejassem as estrelas.

Mas a pergunta realmente relevante, vale a pena ler? Certamente! Saliento alguns que me surpreenderam: Negrinha de Monteiro Lobato traz a crueldade da escravidão e do racismo sob a perspectiva de uma criança, já Baleia de Graciliano Ramos pensa a fome por meio da saga de um cachorro, a genial naturalização do autor. Algumas foram gratas lembranças como Tangerine Girl, de Raquel de Queiroz. O conto campeão, tanto pela surpresa, quanto pela maestria foi A Maior Ponte do Mundo de Domingos Pellegrini, um relato da construção da Ponte Rio Niterói na visão de um eletricista. Devo ter cometido algumas dezenas de injustiças ao não citar uns tantos contos. Paciência.

Outra reflexão que vale é a importância das coletâneas. Esse passeio por meio de um olhar por meio de temáticas, recortes históricos ou seja lá qual assunto for, possibilita conhecer novos autores e contos que caso contrário não chegariam a minha mesa de leitura. Talvez o que mais atrapalhou verdadeiramente foi essa mania de querer desvendar página por página, talvez se deixasse a leitura fluida, livre conforme os afetos e espasmos, a apreciação seria tanto melhor.

O resultado? Leia, e leia a próxima coletânea também, essa fonte de mergulho em águas nunca dantes navegadas que possibilita novas descobertas. Sem talvez o cartesianismo de seguir em linha reta o rumo das páginas, mas em sinuosidades que te possibilitem navegar melhor pelo belo e improvável como um navegante.

Afinal, cem contos valem a pena se a alma não é preguiçosa.

Bogado Lins é escritor, roteirista e leitor de coletâneas

16 tons de Black

O meu amigo Alexandre Palma me presenteou com um livro. Isso mesmo, aqueles de papel que deveriam ter desaparecido faz uns quinze anos. O mais engraçado é que não nos víamos fazia alguns meses, e antes do encontro derradeiro, datava ainda mais tempo. A ocasião e o regalo fez tirar a poeira do meu cérebro e começar uma leitura maior do que os usuais quatro, cinco parágrafos que nos chegam pela internet, carinhosamente apelidados de textão.

Sendo assim, debrucei-me por entre as cerca de 250 páginas para adentrar o universo do Black Rio, movimento que iniciou nos anos 60 e que deixou frutos até hoje para a cultura brasileira. Avancei um pouco mais da metade e já encontrei fôlego novamente para voltar a rascunhar minhas linhas depois de alguns meses em banho maria. Incrível!

O livro é um relato deste movimento que tive contato apenas de maneira residual, o Black Rio, que se iniciou nos subúrbios do Rio e com insistência ganhou o Brasil e a Zona Sul. Mas veja bem, essa perseverança não visava desfilar por Ipanema ou lotar os clubes aristocráticos da elite. Sua maior pretensão era encher casas de shows e colocar os blacks para dançar uma música, mais que isso, um estilo, que eles se reconheciam.

Não havia nada político no movimento, mas havia um orgulho que assustava. Os blacks – negros, pardos, mulatos, morenos e até brancos que por um motivo ou outro estavam no lugar certo, na hora certa – queriam celebrar o orgulho de ser negro, de ser suburbano, de ser o que eram.

Rapidamente o movimento ganhou a antipatia da classe média. Coincidentemente, tanto a direita, quanto a esquerda, se assustaram com o fenômeno e por motivos muito próximos, o rejeitaram. Ambos queriam que os negros se distanciassem da postura altiva e combativa dos negros norte americanos. Enquanto uma queria a unidade do Brasil, outra monopolizava o direito da revolução. Ainda estavam encantados com o discurso de Gylberto Freire a respeito da suposta miscigenação paz e amor brasileira.

Pouco a pouco, aquela sonoridade ganhou a todos. Conquistou os morenos, mulatos, mamelucos e até brancos das multicoloridas periferias e favelas, como meu amigo César, amigo branquelo cinquentenário de olho azul que cresceu no Morro do São Carlos e vivia lembrando de seus tempos de baile black. Expandiu-se a ponto de chegar nas elites, tanto por meio das pistas de dança, quanto das novelas e gravadoras, que disseminaram este estilo de vida. E mais uma vez, a Zona Sul teve que reconhecer que quem mandava naqueles palcos eram os negros.

A leitura rapidamente me fez relembrar o debate, agora adormecido, do turbante. Será que o Black Rio sofreu uma apropriação cultural? Quando o movimento ganhou as gravadoras e a admiração geral, coincidentemente, alguns dos maiores artistas do gênero se projetaram para o Brasil: Luiz Melodia, Jorge Ben e o hoje querido Tim Maia. Sem contar a banda Black Rio que teve até projeção internacional, que só não foi maior por conta de um boicote da gravadora, pressionada pela ditadura.

Muito mais que expoentes, creio que o mais importante é observar o quanto o orgulho de ser negro foi assimilado culturalmente. De tal forma que houveram avanços importantes em relação ao combate ao racismo. O que não significa obviamente que não seja necessário muito mais. A questão é que este orgulho não foi ampliado e inspirou ainda mais pessoas, foi porque não foi disseminado o suficiente. E é exatamente esse o ponto.

Quando James Brown cantava Say it out loud, era para ser ouvido. Quanto mais samba, jazz, hip hop, soul, funk e turbantes houver na sociedade, menos racismo haverá. Se uma criança dança hip hop, usa turbante e compra um boneco do Ray do Star Wars, muito provavelmente ela não seja racista.

O afastamento que se advoga em relação a alguns símbolos e discursos assemelha-se a um certo purismo que durante muito tempo buscou isolar manifestações culturais étnicas de influências externas. O esforço em conservar as coisas exatamente como elas são, ou supostamente deveriam ser, é o primeiro passo para o envelhecimento de uma arte. A vivacidade de uma cultura está justamente no seu compartilhamento e transformação. E a tão medonha indústria cultural é apenas um reflexo disso, justamente por visar o lucro, afinal se ela não chegar nas pessoas, não volta o dinheiro, simples assim.

Admiro que o movimento negro seja combativo. Certos privilégios não são concedidos sem lutas, afinal o privilegiado não costuma abrir mão facilmente dos mesmos. Mas certamente não é se fechando que se vai ganhar essa luta, mas se abrindo, para que cada vez mais inspire pessoas.

E a cultura, neste sentido, tem um papel fundamental de mais de 16 toneladas.

Get Up!

Bogado Lins é escritor, roteirista e articulador do Literatura Cotidiana

Roteiros Difíceis

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Gostaria de fazer uma confissão. Algo impronunciável para quem durante anos tomou como identidade a apreciação de conteúdos culturais: ando preguiçoso. Para falar a verdade, talvez sempre tenha sido, mas creio que o fenômeno atingiu algo que sempre permaneceu intocável nos meus hábitos cotidianos: não consigo apreciar por mais de algum tempo, digamos trinta segundos, qualquer obra cultural.    Passo dias a fio sem música, não consigo assistir de maneira ininterrupta um filme e só consigo ler livros nos momentos de prisão do trajeto casa-trabalho-casa.

Pois bem, ocorre que a preguiça de acompanhar conteúdos extensos, talvez apenas os livros se salvem até o momento, tenha me acometido após anos e anos imerso na internet. E foi justamente ela quem salvou parte do meu ardor em acompanhar algum conteúdo pela “televisão” se é que isso ainda existe. O serviço de streaming é a única resposta possível para este novo mundo anywhere, anytime, anyplace. Mas ele também privilegia um formato que até então não estava plenamente acostumado.  As séries, com seus cerca de 1h de conteúdo, ao mesmo tempo completo e sequencial, servem como uma dose perfeita de apreciação durante o tempo que você pode finalmente dispender entre um projeto e as horas de sono para o próximo.

E é este formato que se aperfeiçoou nos Estados Unidos e tange a perfeição com as novas desamarras da internet que é abordado no livro Homens Difíceis de Brett Martin. O autor justamente versa sobre o desenvolvimento criativo dos seriados norte americanos, por coincidência, durante o boom da tv a cabo nos Estados Unidos, capitaneado inicialmente pela HBO.

Mais do que os personagens e as tramas, o livro trata dos bastidores de criação e da ascensão dos famosos showrunners, autores que controlam salas de roteiro e direção e mudaram o jogo a favor dos roteiristas no cenário televisivo norte americano. Foi justamente esta independência em relação aos resultados iniciais que permitiu o risco de se ter personagens principais cada vez mais complexos e, como o próprio título diz, difíceis.

Este salto de qualidade é também um anseio, trata-se de um público cada vez maior que questiona o sonho americano e não acredita mais em heróis. Mais precisamente acredita num tipo particular de heroísmo, um anti-heroísmo a bem dizer, que se manifesta nos extremos quando não há mais alternativa. Ou talvez até haja, mas não seria fantástico simplesmente fazer o que dá na telha mesmo assim? Sabe aquele pequeno ditador que vive em cada um de nós e gostaria de se manifestar nos momentos de estresse? São  personagens que “fazem o trabalho sujo” quando devem ou simplesmente querem fazer. Em um passado recente, seriam os vilões carismáticos e, de tão bem quistos, humanizaram-se e ganharam boas justificativas para fazê-los, as mesmas que exibimos em nosso subconsciente.

Sim, personagens difíceis que foram elaborados em fôrmas igualmente difíceis, durante processos penosos de risca faca entre roteiristas mediados por um roteirista de modo geral ditador e sanguinário que, além de uma big idea, ainda detém o mérito de personificar um show.   Artistas, enfim, complexos, insuportáveis e irresistíveis. E o livro narra em detalhes os processos de séries de diversas emissoras, até chegar ao auge, em Albuquerque no clássico dos clássicos Breaking Bad.

O livro em si não oferece grandes sacadas para roteiristas e escritores que, como eu, esperava talvez um ou outro caminho das pedras para fazer´, quiçá, o próximo House of Cunha, mas deu em retorno um pouco deste entendimento da complexa rede de produção americana e a certeza, mais uma vez, que uma andorinha absolutamente não faz verão. E, ainda que cada vez mais bons conteúdos estejam sendo gestados por aqui, como faz falta um pouco deste ambiente de concorrência no marasmo do cenário televisivo brasileiro! 

Bogado Lins é escritor, roteirista e articulador do Literatura Cotidiana

Solano nas Entrelinhas

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Eu conheço o Solano já data uma pré-história de narrativas, em uma época do Rio de Janeiro cheia de textos e pretextos que não duravam mais que um encontro fortuito no boteco ou em uma festa. Hoje nossa amizade soma quase duas dezenas de primaveras.

A  primeira vez que nos encontramos, Solano exibia sempre um grande plano. E sua mente durante muito tempo foi povoada por eles. Muitos deles, sem dúvida, repletos de possibilidades. Porém, Solano surpreendeu quando, em vez de mirar grandes objetivos, passou a mirar a si mesmo. Foi neste momento que nasceu como um verdadeiro autor e escreveu A História dos Três Pontinhos.

O livro é um retrato perfeito do artista. Tanto o artista como coletivo, em sua eterna busca por uma função, reconhecimento ou, simplesmente, pagar as contas no final do mês, mas também como individuo,  como Solano mesmo, reunindo alguns de seus multitalentos como a ilustração, a palavra e a junção ideal entre os dois elementos, sem contar, é claro, a “autonarrativa” de se encontrar.

O caminho que trilhou acabou sendo um grande sucesso no mercado editorial. Adotado em escolas e bem quisto por qualquer pessoa que admire um bom texto. Pouco tempo depois, o autor lançou seu segundo livro. A Revolta das Vogais foi uma excelente reprodução da fórmula, e gerou a continuidade da linguagem do artista, gerando a coleção Entrelinhas onde a técnica de se combinar imagem e texto foi desdobrada em possibilidades variadas.

Porém, o último livro de Solano completa a coleção trazendo algo que talvez tenha sido utilizado com parcimônia no segundo livro: Solano. O Eu que Não Queria Ser Eu é mais que uma continuidade da coleção ou até de um fechamento, trata-se de um processo de amadurecimento do artista  envolto em suas expectativas em relação a si e ao mundo.

Este amadurecimento está presente de tal forma no livro, que ele sem dúvida acabou contendo questionamentos mais complexos e fundamentais que o anterior, e até mesmo do primeiro. Reflete talvez o momento do escritor, trazendo para seus leitores um pouco mais desta busca incessante do artista. Leitores estes que podem ser crianças e jovens, mas poderia muito bem ser um filósofo, Heidegger quiçá – por que não?

O Eu que Não Sabia Ser Eu parece ser um encerramento perfeito de um ciclo. Encerra de maneira ideal a Coleção Entrelinhas – será? Porém, mais importante, parece ser o encerramento do ciclo do próprio artista de busca e aceitação de si como isso mesmo que é– um artista.

LANÇAMENTO

QUINTA-FEIRA

14 DE ABRIL ÀS 19H

LIVRARIA DA TRAVESSA – BOTAFOGO

RUA VOLUNTÁRIOS DA PÁTRIA 97

RIO DE JANEIRO

Bogado Lins é escritor, roteirista e amigo do Solano Guedes

Apocalipse Poético

Admiro o trabalho de Eduardo Lacerda à frente de sua editora. Trata-se de uma verdadeira militância em prol da poesia. Sendo editor, poderia muito bem acomodar-se na literatura “mais fácil” e que eventualmente pode ter um autor “premiado” com uma montagem teatral, filme, vídeo ou qualquer , a exemplo de contos, romances e biografias. Ou ainda partir para o mundo dos paradidáticos onde os editais do governo podem garantir a subsistência cotidiana.  Um breve parênteses: “fácil” para o editor obviamente, que por mais difícil que seja, ainda pode “viver” eventualmente de livros, ao contrário do escritor, que se tentar se sustentar exclusivamente de sua literatura com certeza irá sucumbir na miséria.

Voltando ao tema, sua editora, a Patuá, se destaca há cerca de cinco anos por apostar em novos poetas. Faz isso sem algo que se tornou comum no mercado, extorquindo o público, o que na prática deixa no ar a pergunta: para que editora? Ou seja, Eduardo é efetivamente um editor, o que o torna diferente de muitos aventureiros por aí que ainda teimam em encher caixas de e-mail e a propor “concursos” indecentes com taxas de inscrição para bancar publicações.

Pois bem, estive sempre a um passo de comprar algum dos seus livros e finalmente tive a ocasião perfeita. Tudo começou com o convite do amigo roteirista e escritor João Knijnik para o lançamento de seu amigo no Bar Canto Madalena. Tratava-se de Ademir Assunção que, até então, não me era conhecido. Muito mais por uma ignorância do que por falta de méritos literários do autor. O sujeito simplesmente já ganhou o prêmio Jabuti em 2013 pelo livro A Voz do Ventríloquo e já escreveu 12 livros ao todo, sem contar as antologias. Pois bem, surpreende-me que um autor proeminente, ou no mínimo insistente, não chegue ao conhecimento de alguém que se esforça para acompanhar os ditames literários. Bom, de uns tempo para cá, nem tanto, é verdade.

De todo o modo, lá estava no duplo lançamento do autor em um livro espelhado em  dois, de um lado se encontrava Até Nenhum Lugar, e do outro, Pig Brother. Pela crise, que já está na minha cola desde o segundo semestre do ano passado, tive que escolher entre um e outro. Sendo assim, fui pelo título: Pig Brother parecia um tanto mais instigante.  Agora, tempos depois, uma dúvida me corrói, já me explico.

Pois bem, recentemente selecionei o livro para fazer parte das minhas viagens entre a casa e o serviço, e vice-versa. Como alguns talvez saibam, este é basicamente o momento que dedico-me á leitura nos tempos atuais. Pois bem, depois de alguns anos sem ler um novo livro de poesia, resolvi dedicar-me ao pleito. Recriei o ritual da leitura onde valorizei cada página com leituras pausadas e, por vezes, releituras para tentar absorver as metáforas do autor.

Não posso dizer que foi exatamente uma experiência prazerosa. Ocorre que o autor tem uma literatura que vem para incomodar. Engloba, talvez esta seja a palavra perfeita,  um mundo todo ocupado, emoldurado, percorrido por um ser destrutivo que calha de ser o mesmo que o descreve. O planeta é todo um espaço estriado, um tabuleiro, ocupado por um projeto de espoliação, onde parece não haver redenção.

Sua poesia apocalíptica mescla referências cotidianas da política, economia e telejornais com um universo pop descontextualizado propositalmente. No universo de Ademir, um mosaico sinistro do nosso formado por drogas, sexo, sofrimento e imagens distorcidas,  o Super Homem não vai te salvar.

Aliás, esta inspiração pop ganha vida por meio de personagens que se repetem ao longo do livro, como que servindo de unidade entre uma poesia e outra, de modo que o início e o fim de cada círculo contenha uma unidade sem continuidade lógica, como que reproduzindo  um looping maldito em  espiral: Lua Cadela, Mac Death, Black Ice, Homem de Aço, Lili Maconha, dentre outros.

A dúvida que ficou era se o livro representa um estilo do autor, ao menos entre os dois lançamentos do ano passado, ou simplesmente um caminho que Ademir optou por percorrer no meio de sua obra. Sim, acabou fazendo falta o irmão siamês, mas de todo o modo,  fica a recomendação. Vamos ler novos poetas. E,se tudo der certo nas minhas idas e vindas do trampo, em breve indico outro por aqui.

Bogado Lins é escritor, roteirista e articulador do Literatura Cotidiana

Ainda Assim Veríssimo

Quando criei o Literatura Cotidiana, e a ele se juntou o amigo e parceiro Paulo Laubé, um dos intuitos sempre foi trazer dicas de livros e arte em geral com uma perspectiva positiva. Afinal, o declínio do hábito da leitura, inclusive de quem realmente lia, já é algo assustador, por assim dizer. Desencorajar leituras, portanto, longe daqui.

Porém, nos últimos tempos, creio que a despretensão do blog e os diversos sentimentos e pensamentos que trazem as leituras mudaram minha análise. Até porque minha análise dos livros vem mudando de perspectiva, avançando para o terreno de reflexões e ensaios sobre assuntos que os livros, películas e trabalhos artísticos em geral trazem. Você provavelmente não encontrará uma critica puramente negativa, mas, cada vez mais, o diverso estará presente, oferecendo novas dimensões da obra em questão.

Pois é, analisando o escritor, e sobretudo minha história com ele, que começo a reflexão sobre o último livro de Veríssimo. As Mentiras que as Mulheres Contam não parece denotar uma saturação, mas antes um novo caminho que ele parece pouco a pouco vir tomando em suas crônicas e contos curtos. Um caminho novo em seu conjunto da obra, menos óbvio e que, eu particularmente, não gostei.

É óbvio que o modelo que o escritor criou em algum momento chegaria a um looping do mesmo. Afinal, sua genialidade já tinha se desdobrado em textos infinitos ao longo de suas décadas de cronista. Portanto, a solução do autor é louvável do ponto de vista literário, mas de algum modo traiu a alguns leitores como eu que procuravam o autor para pura e simplesmente ter a segurança de ler uma coletânea de crônicas com padrão Veríssimo.

Veja bem, nada radical, o bom e velho Veríssimo está representado lá. Continua tendo as crônicas com temáticas inteligentes e desfechos astuciosos, ainda que envelhecidas pelo tempo, como aquela que trata de uma casa de “rendez-vous” onde as “primas” em vez de mostrar, escondem.  Ou outra que o interlocutor decide que sua filha não é digna para um pretendente devido a como seu pai prepara um churrasco. Mas veja bem, a surpresa existiu. Identifico uma certa guinada no autor. Sua leveza humorista, de tiradas deliciosas e conclusões hilárias e sagazes, em alguns momentos caminha para uma conclusão muito mais surrealista e com uma certa propensão ao grotesco, ao sinistro. Ainda prefiro o Old Times Veríssimo, que me transporta a um tempo e humor que não voltam mais.

Outro erro, provavelmente de marketing, foi o título escolhido. Apesar das mulheres  serem o mote da trama, na maior parte das vezes não são o centro. Em outras palavras, não são elas que conduzem o plot e, de forma geral, as conclusões são em muitos casos do ponto de vista masculino. Sem querer entrar na seara do machismo, afinal estamos falando do campo livre da literatura, mas o título parecia indicar que o autor fosse explorar as nuances do ponto de vista feminino, algo que está presente em poucas crônicas do livro.

Veríssimo é sempre Veríssimo, mas se por acaso você ainda não conhece, talvez seja o caso de começar por outras obras. Ou não. Comece por esse, afinal um livro mediano dele continua sendo muito melhor do que a maior parte do que se publica por aí na atualidade.

Bogado Lins é escritor, roteirista e articulador do Literatura Cotidiana

Evangelho Segundo o Messias

Um bom protagonista costuma ser a chave para o sucesso de um romance. Sua definição costuma ser um dos passos fundamentais para angariar leitores, ou espectadores, no caso dos filmes.

Uma boa dose de messianismo é sempre um bom norte para se começar uma história. Repare que boa parte de livros ou filmes de ação e épicos, principalmente aqueles que se passam em universos incríveis, utilizam-se da figura do escolhido para ser o centro do plot. Antes de tudo, um povo oprimido por uma força muito superior, daí surge um homem com talento incomum, uma certa inconformidade as regras vigentes e com uma índole incontestável. Invariavelmente, estamos falando de um órfão, para justificar que, bem, uma mãe virgem seria forçar a barra.

Há algumas vezes que o escritor faz uma escolha ousada: seleciona um protagonista real para fazer parte da sua narrativa messiânica.  Agora e quando o messias é o próprio messias? Aquele que serviu de imagem e semelhança para todos os demais?  Pois bem, foi isto que José Saramago fez no incrível e salvador Evangelho Segundo Jesus Cristo, um dos seus livros mais famosos e talvez menos lidos.

Não vou mentir. Demorei anos para iniciar de vez a leitura. O primeiro capítulo, ao mesmo tempo genial e prolixo, me emperrava a fluidez para avançar até o próximo. Trata-se de uma descrição minuciosa do “A Grande Paixão” de Albrecht Durer, tal como se o próprio Saramago desenhasse a gravura. Porém, ao conseguir desenhar o quadro na cabeça, após leituras e releituras, avancei e engrenei a história.

A história começa antes mesmo de Jesus nascer. E já começa com uma Liberdade poética incrível sobre como Maria engravida de Deus e José, simultaneamente, vamos dizer assim.  A partir daí, o autor faz uma imersão na história, incorporando os costumes da época não apenas no cenário mas na própria narrativa, como se o narrador em terceira pessoa fosse ele mesmo parte do mundo em que se vive.  Mais que as idiossincrasias do judaísmo, chama atenção ainda a descrição das localidades, completando a pintura do período e da história. Impressiona a riqueza dos detalhes.

Mas mais que a habilidade e destreza de Saramago com as palavras, e seu habitual desapego da pontuação, a narrativa impressiona muito mais pela forma que o escritor lida com a vida de Jesus, particularmente na grande lacuna da Bíblia. Saramago não vai muito longe, mas vai incluindo suas conclusões a respeito do assunto de maneira singela e encantadora, até de fato chegarmos aos grandes fatos, que de alguma forma gera curiosidade de como o escritor vai descrevê-los. Impressiona como um ateu consegue capturar o fantástico do mistério religioso e torna-lo tão palpável para os leitores.

Aliás, esta é a grande sacada de Saramago, conforme vai narrando a história, subitamente, uma reviravolta incrível ocorre na história. Uma que só poderia ter sido arquitetada por Saramago e que faz com que o final do livro ofereça uma grande e inesperada reflexão.  Mas, óbvio, no spoilers, não vou contar os pormenores da manobra.

Creio que o mais importante em si, seja registrar que O Evangelho Segundo Jesus Cristo vale cada parágrafo de Saramago. E quem conhece sabe que me refiro nas suas extensas orações sem vírgulas, que são, muitas vezes, de tirar o fôlego, principalmente para colher pérolas e pérolas para ficar marcado na lembrança, a exemplo desta: “branco sangue que é a lágrima”.

Pois é, como diria o próprio autor, “…a história de Deus não é toda divina”.

Bogado Lins é escritor, roteirista e articulador do Literatura Cotidiana

Brizola – uma Crítica

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Certa vez, estava na Rodoviária e entrei naquela livraria típica de rodoviárias (e aeroportos) que não para de crescer. São as livrarias de bancadas, que possuem muitos livros empilhados e poucas sessões, onde se encontra evidentemente os melhores tesouros. A baixa expectativa era relativa a já esperada proliferação de best sellers que não costumam, de modo geral, ser o meu ramo predileto de leitura.

Mas lá estava eu olhando quando me surpreendi. Dentre algumas outras pérolas, encontrei um livro sobre o Brizola. O nome é esse mesmo: Brizola, simples e objetivo. Conforme a capa acima, editado pela Paz e Terra.

Recentemente escrevi sobre o político, que durante algum tempo, antes do nosso breve milagre econômico, era a principal alternativa de esquerda do país. O livro foi escrito por Clóvis Brigagão e Trajano Ribeiro. Depois da leitura fiquei sabendo que foram companheiros do político, que poderia ser classificado como um jagunço sulista, no melhor sentido da palavra.

Antes de tudo, um breve resgate: Brizola teve algumas realizações brilhantes, principalmente no campo educacional. Antes da ditadura, quando era Governador do Rio Grande do Sul, construiu mais de 5.900 escolas. Ao retornar do exílio, como Governador do Rio de Janeiro, criou um novo conceito de educação, os CIEPs, que recentemente foi replicado nos CEUs em São Paulo. Mais muito além de suas realizações, esperava conhecer aspectos de sua personalidade, afinal assistir Brizola em cena era sempre uma surpresa.

Enfim, tinha grandes expectativas em relação ao livro, tanto pelo próprio político, quanto por tudo que ele representou para a esquerda, como alternativa real pós-PSDB. Ainda por cima, considerando a atual decepção com o cenário atual do que representou o PT em termos de governo. Porém, o livro se concentra em um período e em aspectos em geral que não refletem a importância de Brizola. Sua atuação durante a ditadura sem dúvida foi relevante, mas nada comparado ao que ele realizou antes e depois do período.

Aliás, mesmo durante este período, os autores focam em aspectos que cada vez tem menos relevância. Para muitos jovens atualmente, e mesmo eu, que já não sou tão jovem assim, pouco importa as manobras em reuniões intermináveis sobre pautas na Internacional Socialista. Aliás, no fundo, a política caminha para uma percepção entre o possível e o que a população deseja. Estes intermináveis debates sobre aspectos tão vastos como o posicionamento sobre a política dos Estados Unidos e o socialismo real estão cada vez mais ultrapassados. Claro que a reflexão e posicionamento são importantes, mas é cada vez mais urgente o posicionamento sobre a realidade que você vive, aqui e agora, e isto costuma ser mais transformador do que você refletir sobre um mundo que muitas vezes não te concerne.

Só para citar um exemplo, São Paulo faz muito mais para a política com seus acertos (e erros) para tornar a cidade mais “humana” do que a esquerda mais radical faz criticando em nome de um suposto progressismo as políticas do FMI ou dos Bancos internacionais.  Aliás, este progresso de São Paulo só é possível por já ter sido adotado em cidades do mundo inteiro, mostrando que realizações costumam ter efeitos mais transformadores do que apenas as ideias, ou elas sozinhas.

Enfim, o livro continua tendo o valor acadêmico para quem deseja pesquisar sobre o personagem para pesquisas ou análises acadêmicas, mas não aconselharia para quem pode ou poderia se interessar pela figura política. E, assim que possível, vou procurar outras biografias do dito cujo.

João da Crônica

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Veríssimo foi uma grande inspiração na minha vida. Ao descobri-lo no meio nas páginas dos jornais – sim, sou da época dos periódicos – descobri que os textos poderiam ser curtos e mesmo assim proporcionar momentos de grande risada. Sua capacidade de criar humor a  partir de situações cotidianas e expressar isso com algumas páginas era viciante. É uma referência até hoje para um humor leve e cotidiano.

A partir dele, mergulhei-me no universo das poucas palavras, passei a acompanhar cronistas dos mais diversos. Primeiramente atentei-me aos humoristas, mas logo depois descobri uma nova seara completamente distinta de cronicar: retratar as ruas. Caminhando entre uma e outra, observando as pessoas e os pequenos dramas de cada um, de repente, cheguei a uma vereda literária que insisto em traçar.

Foi em meio à maturação de um estilo ou, despretensiosamente falando, uma possibilidade, que eu descobri João do Rio. Trata-se talvez do primeiro cronista brasileiro que chegou ao grande público com suas pequenas descobertas diárias. Imagino o frisson de descobrir um novo filão completamente novo para os periódicos da época. E ganha uma nova dimensão com as redes sociais, a partir de alguns autores como Antônio Prata e Lusa Silvestre.

João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto – seu nome era maior que os seus textos- era jornalista e escreveu para praticamente todos os periódicos do seu tempo. Algumas das principais crônicas suas, espero não estar sendo injusto, estão reunidas no livro A Alma Encantadora das Ruas, título que faz jus ao trabalho do escritor de mapear o espírito de uma cidade que se reconhecia moderna pela primeira vez.

Porém, a modernidade é uma via de mão dupla, enquanto os chopps, apresentações internacionais, shows, trilhos de bonde, prédios, avenidas proliferavam; uma outra cidade crescia e complementava ela de forma orgânica, quase inseparável, formada pela imigração, pobreza, malandragem e improviso,  como duas faces da mesma moeda. E tal como uma verdadeira necessidade da paisagem de se expressar, foi que João Paulo Emílio Cristovão, etc, etc, tornou-se João do Rio.

Não se trata de tirar o protagonismo do autor, mas antes de estabelecer sua verdadeira importância. Sem ele talvez a cidade não conseguisse o feito de se retratar simbolicamente em um período tão único e importante para a formação de uma identidade carioca. Uma personalidade que se formou através da assimilação dessas diferenças, para o bem e para o mal, onde toda uma cultura pôde se consolidar como parte do carioca comum.

Sua descrição das ruas trouxe para sua época, e para as vindouras, um relato fiel do que o Rio de Janeiro vivenciava no dia-a-dia no cada vez mais longínquo início do Século XX. Os trabalhadores da mineração, os vendedores de preces, a mendicância, os pintores de parede, os prisioneiros, os chineses usuários de ópio e toda uma sorte de ocupações e vícios que as ruas fomentavam em seu caldo cultural.O que diferencia João do Rio, porém, é o seu entendimento de flaneur que tudo aquilo era uma parte importante, quiçá essencial, da cidade. Esta percepção inaugura toda uma literatura em âmbito nacional, principalmente uma que se atem as pequenas percepções do mundo e de algum modo gestou a crônica brasileira.

Ler João do Rio, portanto, é observar o nascimento de dois fenômenos absolutamente incríveis e provavelmente únicos: o carioca e sua carioquice, e, ainda, este texto curto, direto, intuitivo e quase displicente que narra as ruas de nosso Brasil em papéis de jornais e mais recentemente na internet, a crônica brasileira.

Bogado Lins é escritor, cronista e editor do Literatura Cotidiana

Um Abraço

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Em 2001, tempo onde as viagens estelares foram substituídas por um walkman portátil com uma lista de mil músicas, eu ainda era um jovem universitário. Estava na metade da universidade e não tinha a mínima ideia qual seria o rumo da minha vida. O Brasil também ainda não tinha sequer uma pista que um ano depois seria governado pela primeira vez por um governo de um operário nordestino. Era um ano cheio de emoções e incertezas.

Foi neste ano, que ocorreu o Primeiro Fórum Social Mundial em Porto Alegre. Era um misto de ativismo e conteúdo que reuniu universitários do mundo inteiro, principalmente das Américas, na principal capital do sul do país.  Um dia antes de percorrer a universidade que abrigava cursos diversos, estava em uma das principais vias da cidade gritando palavras de ordem e exigindo mudanças na política do país e do mundo.

No meio a tanta oferta de cursos e atividades diversas, lembro-me de ter escutado um burburinho qualquer que anunciava uma palestra de um grande escritor. Eu ainda não fazia ideia quem era Eduardo Galeano. A primeira vez que o conheci não foi pelos seus livros, mas através daquilo que dá substância a eles: sua oralidade.  Palestrava como um contador de histórias.

Muito mais tarde, ao ler O Livro dos Abraços, verifiquei que muitas daquelas histórias que contava com a suavidade e naturalidade de um amigo no Fórum, estavam registradas em suas prosas de meia página entre a poesia e o jornalismo. Suas descrições do amor, das mulheres e mesmo da opressão, através de simbolismos e gestos, transcendiam a abordagem trivial cheia de ressentimento. Era uma revolução divertida e cheia de beleza.

Hoje, reacessando as emoções dos seus textos, percebo que Galeano foi o escritor da minha juventude. Sem dúvida, foi o primeiro autor que li que, em cada meia página, conciliava uma grande história com um estilo inigualável. Um estilo, diga-se de passagem, que muitas vezes se traduzia na forma de contar um acontecimento trivial.

Anos mais tarde, a poesia se desenvolveu como prosa em minha literatura e hoje, de vez em quando, aparece por aqui, entre uma reflexão e outra.  De alguma forma, agora sei de onde veio esse recurso de contar o cotidiano tentando inserir beleza e reflexão entre uma linha e outra. Pasmem ter reconhecido que Galeano influenciou-me mais do que poderia supor. Além de toda a extensão de uma fronteira latino-americana subitamente aberta por sua prosa, tive diante de mim a liberdade de escrever pouco , tentando fazer de cada frase uma história inteira.

Obrigado, Galeano

Bogado Lins é escritor, roteirista e articulador do Literatura Cotidiana