Maniqueísmo Profundo

deep throat

Os filmes baseados em fatos reais têm um apelo próprio. Muitos deles não sobreviveriam caso fossem simplesmente narrativas inventadas, mas pelo fato de supostamente retratarem uma realidade, ganham o público. Um verdadeiro golpe baixo, legítimo, por suposto, mas pura covardia. Provavelmente há inúmeras razões para uma narrativa “real” chegar mais facilmente ao público. Cito uma que sempre me pareceu a mais óbvia: estes filmes mostram que a vida é mais fantástica do que parece. Ainda mais para a maioria do público, que por um lado se acomoda no próprio cotidiano, por outro, dispensa o olhar que revela o fantástico do dia-a-dia.

Verdade seja dita, Deus é um péssimo roteirista. A frase é da Duda, minha amiga, mas como Deus é patrimônio público, eu tomo como minha também. Ocorre que a vida é tão fantástica, tão clichê, que às vezes parece má ficção. Observe o cotidiano: assassinatos, ciúmes, paixões, histórias de amor, sexo selvagem, loucura, jogos políticos, guerras, dramas, protestos, prostituição, ação, traições, comédias das mais diversas. Duvido que uma vida inteira se passe sem pelo menos dois ou três destes ingredientes, por mais econômica que seja.

Acabo de assistir Lovelace, filme que trata da vida de Linda e sua trajetória antes, durante e depois de um dos maiores sucessos do cinema, Garganta Profunda.  Ok, cinema pornô, mas se considerarmos que a bilheteria foi digna de qualquer filme de Hollywood, algo o filme teve a oferecer. Teve como alguns dos entusiastas celebridades como Truman Capote, Mike Nichols e foi descrito pela revista Variety como o Ben-Hur do pornô. De fato, o momento que mais me chamou a atenção em todo o enredo foi quando o roteirista declarou com orgulho que haviam 42 páginas de roteiro! Se tudo der errado, eu mando meu portifólio para as Brasileirinhas.

Como falei anteriormente, o fato da história ser “real”, por si só, vale o bilhete. Mas infelizmente, a história oscila dentro de uma narrativa moralista que acaba comprometendo o filme. A história é dividida em dois momentos nítidos, um maniqueísmo explicito, perdoe-me o trocadilho.  Talvez a história fosse mais “real” se misturasse as duas polaridades, desmistificando tanto um lado quanto o outro.  De todo o modo, é importante salientar que provavelmente foi a estratégia mais correta para retratar a história de Linda, tal como ela mesma desejou. O livro Ordeal, que narra o relato da atriz sobre sua própria vida, deve ter sido a base para o roteiro. Ela inclusive foi ativista durante um tempo contra a indústria pornô.

Sem dúvida, o sofrimento dela deve ter sido verdadeiro, considerando que passou por um detector de mentiras para averiguar a autenticidade do seu relato. Porém, algo deve ter sido suavizado no filme, o antes e depois da atriz, considerando que consultas na internet apontam para uma sequência do sucesso e também curtas metragens anteriores, que fazem refletir se a atriz era tão cabaço assim. A todo o momento, parece que Linda era uma menina travessa, mas inocente, que foi levada para o mal caminho. A hipótese não parece se confirmar com pesquisas na Internet a respeito de sua trajetória.

Talvez o maior mérito do filme seja resgatar a história de Linda, que eu mesmo não conhecia, já que nunca assisti pornografia com a perspectiva de um connoisseur. Pouco importava as “atrizes” que figuravam nas poucas películas que assisti do gênero, menos ainda os “atores”. Para falar a verdade, depois de algum tempo misteriosamente sempre estes filmes ficavam desinteressantes. De fato, talvez esta seja a melhor “moral da história”, Linda foi uma atriz, assim como outras do gênero também sejam. Se ela interpretou 42 páginas de roteiro e fez tanto sucesso, teve algum dom. Possivelmente bem mais que muitas de suas supostas pares da Malhação. A arte definitivamente pode estar em qualquer canto, até mesmo enfiada garganta abaixo.

 Bogado Lins

Uma resposta em “Maniqueísmo Profundo

  1. Gostei muito muito do Filme , acho que bateu contudo na minha veia feminina , me emocionei , chorei de emoção , chorei de dor , e tive vontade de acabar com aquele homem terrível e cruel . E o que mais me dói em tudo isso é saber que mulheres e crianças são espancadas e abusadas descaradamente no Brasil e no resto do mundo . E, maniqueísta ou não, esta mulher teve a coragem de não se calar diante a brutalidade que ela sofreu. Indico o filme e parabenizo você pela crítica.

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