Blue Woody

blue jasmine

Recentemente assisti ao último filme do Woody Allen, Blue Jasmine. O diretor, pelo volume de produção, e pelo estilo e mística que criou para si, acaba tornando seus filmes algo além de uma peca individual. Acabam sempre servindo de retrospectiva dos anteriores.

Como obra, o filme não representa o melhor de Woody Allen.  Conforme os últimos filmes do cineasta, presta bem o papel de mostrar vistas incríveis da cidade do momento: San Francisco. Woody consegue como ninguém fazer da própria cidade um personagem do filme. Mas especificamente  em Blue Jasmine, a cidade é apenas um coadjuvante, quase figurante, do argumento do filme.

Pois bem, a personagem, como sempre, é a imagem e semelhança de Woody e suas manias e frustrações. Porém, desta vez,  além de ter escolhido uma mulher para o seu papel, ofereceu um lado mais enojado, fútil, que o artista resolveu mostrar. Tal imagem é reforçada por tirar a mulher dos estereótipos comuns que o diretor costuma utilizar, sempre relacionados ao meio artístico. Agora, a personagem não é diretora, roteirista, pintora, nada, niente, rien du rien. Simplesmente uma mulher casada com um milionário do setor financeiro, bonita, é verdade, mas prejudicada pela idade e pelas próprias frustações. Talvez reflexo de seus próprios relacionamentos, talvez por uma fase mais “blue” do próprio artista, ou ainda uma mescla dos dois e ainda outros ingredientes.

O filme é interessante, obviamente,mas muito aquém das obras-primas do dito cujo. Infelizmente um gênio sempre terá a si mesmo como obstáculo para o público. Mas de todo o modo, o filme é divertido e extremamente válido.Antes de tudo pela própria dificuldade de encontrar grandes obras,. Não que não haja grandes filmes sendo produzidos e exibidos, mas a dispersão causada pela internet acaba dificultando o acesso a estas obras. Sendo assim, Blue Jasmine é extremamente válido, sobretudo pela brilhante interpretação de Cate Blanchet.

Porém, o fator principal, e isto óbvio serve para somente nós, fãs do dito cujo, que a filmografia Woody Allen segue uma linha gráfica que oscila com uma certa constância, mas também com súbitos improvisos, as vezes radicais a ponto de apresentar uma nova faceta de sua arte,  tal como um solo de jazz das saudosos big bands. Sim, Woody costuma ir e vir entre o drama e a comédia, temas leves e épicos, filosóficos e mundanos, suas neuroses e simplicidades; enfim, construiu ao longo de seu tempo de cinema, um verdadeiro gráfico que ilustra sua história pessoal e artística e que serve como uma história à parte do próprio filme do momento, como uma série de televisão, que nos faz sempre esperar qual será o próximo capítulo, ou neurose, ou conquista, felicidade , argumento ou ainda sua ideia genial.

Sim, porque muitas vezes um filme inteiro de Woody é baseado em uma neurose, como por exemplo o relacionamento com uma ex-mulher ou com seu filho(a). Outros baseia-se em apenas um argumento, como Melinda e Melinda, onde ilustra que a mesma história pode ser contada através do drama ou da comédia. Um ou outro se fundamenta em apenas uma ideia genial: imagine um filme sobre um personagem que sai da tela do cinema e conquista uma mulher.

O último ilustra uma fase mais complexa de Woody. Desta vez, o roteirista adentra-se numa história onde vai pouco a pouco apresentando facetas do enredo e da personagem principal e dá reviravoltas, quase inesperadas, por vezes dramáticas, outras engraçadas, até o desfecho, onde demonstra em qual período ele próprio se encontra dentro de sua trajetória pessoal. Sem argumentos, porém, como Match Point, apenas narrativa, apenas vida.

Por sorte, a série Woody Allen está ainda no ar. Aguardemos ansioso o próximo capítulo.

Bogado Lins

Choose Life

Trainspotting

A Europa pode não ser mais tão aspiracional para muitos jovens hoje em dia, mas certamente nos anos 90 era um Eldorado distante que atraía a minha geração e muitas anteriores. Algumas de suas cidades continuam exercendo aquele magnetismo que atrai turistas, olhares e sonhos. Quem não deseja circular pelas ruas de Paris, ou conhecer a noitada de Barcelona, ou ir a pubs em Amsterdam ou Londres? Mas as oportunidades já não são tão atrativas quanto foram, ou pareciam ser, até meados do início do século. Hoje é mais comum os brasileiros irem para estas paragens com aquele ar distante de turista, que após tirar fotos, posar em pontos turísticos e postar no Instagram, retornam para o seu cotidiano com apenas uma ou outra lembrança e a cabeça na próxima viagem para a Indonésia.

Nem sempre foi assim, a Europa como um todo representava um sonho de uma vida melhor para muitos de nós nos idos anos 90. Certamente algumas cidades continuam oferecendo oportunidades, mas veja bem, naquele tempo qualquer país europeu parecia melhor do que o Brasil, em quase qualquer termo de comparação. Brasileiros iam para qualquer canto que fosse, até os considerados mais pobres do continente, em busca de uma vida melhor. Isso sem contar Portugal, um dos países mais pobres do continente, considerado pelos próprios europeus uma amostra da África, e que sempre foi destino natural para os nossos conterrâneos, pela facilidade da língua.

Porém, a tragédia era anunciada, as populações envelheciam e os jovens viviam um mundo à parte. Eram ao mesmo tempo velhos e novos demais. Lembro-me de conhecer estagiárias alemãs e italianas de 30 anos visitando o Brasil, algo absolutamente normal, considerando que os empregos eram de forma geral estáveis e os cargos exercidos por tempo de serviço. Dificilmente um jovem saía da faculdade com emprego na área, algo que obviamente não era tão alarmante levando em conta que a desigualdade social era pequena, qualquer emprego, de faxineiro a físico nuclear, garantia um nível de vida parecido. Quando o jovem não estava empregado, havia os inúmeros beneficio sociais que eram mais do que suficientes para garantir uma vida razoável.

Talvez por essas razões, ou outras quaisquer, a Europa também tinha um outro lado que ao mesmo tempo assustava e atraía: era uma fauna de drogas lícitas e ilícitas. Jovens sem grandes perspectivas profissionais ou contas para pagar, desapegavam das escolhas cotidianas e se afundavam nas drogas.  A Holanda mesmo já tem a maconha liberada desde aquela época, mas ela é fichinha comparada com outras histórias que nos chegavam a todo instante. Lembro-me de relatos de praças europeias que eram liberadas para o uso de drogas, se não estou enganado na Suíça e outros países ainda que faziam vista grossa. Desde aquela época a droga já era descriminalizada para usuários em boa parte daqueles países.

A Heroína, por exemplo, era uma excentricidade que praticamente só existia por lá e talvez um ou outro lugar mais retrô dos Estados Unidos. Uma droga cara, feita do ópio, e que oferece um dos vícios mais arrebatadores. Por suas características, estava fadada ao desaparecimento com a emergência do Crack, igualmente viciante e mais barata. Foi sobre a heroína, ou mais precisamente sobre seu vício, que o premiado filme Trainspotting se inspirou para retratar uma geração sem perspectivas da Escócia, “the scum of the Earth” segundo Mark Renton, personagem do enredo.

Naquela época, vivendo no Rio de Janeiro de morros e criminalidade, o filme tinha aspectos que nos fascinavam e intrigavam. Era um contraste absurdo. Para começar, buscar a droga na tal Cidade Maravilhosa nos anos 90, até um reles baseadinho, exigia uma maratona cheia de perigos e conquistas. Como se sabe, as favelas eram palcos de tiroteios constantes, entre policiais e traficantes, e dos traficantes entre si. Vivíamos em uma guerra velada entre duas, mais tarde três, forças do tráfico que pareciam torcidas organizadas. E ainda havia a policia a equilibrar e desequilibrar o jogo, e a oferecer aos usuários o perigo da extorsão ou da prisão em um dos sistemas carcerários mais horripilantes do mundo.

Para nós, jovens do terceiro mundo, aqueles viciados que viviam no Eldorado europeu, eram heróis, mas ao mesmo tempo eram absolutamente ridículos. Como poderiam em um mundo tão ideal serem drogados? “Escolher a vida… mas por que eu iria querer algo assim?”. O que era ridículo neles é o que de certa forma nos fascinavam, tornava a escolha deles ainda mais impactante. A cocaína na época era o que havia de mais radical nas favelas cariocas, nada perto do que um “sincero vício de heroína”. Era um “heroísmo”, perdoe o trocadilho, abandonar tudo como o filme retratava, num mundo que parecia perfeito para um jovem do terceiro mundo. Para que “escolher trabalho, carreira, família, uma merda de uma televisão enorme, maquinas de lavar, carros, cd players(lembre-se anos 90)”?  As razões para não escolher? “Para que razões, quando você tem heroína”?

Por um lado, assisti-lo mais de 15 anos depois, o filme é de 96, serviu para compreender porque o amávamos tanto naqueles idos tempos.  No fundo, a droga representava, e sem dúvida ainda representa, a dificuldade do jovem em escolher, em última instância, sua sensação de falta de escolhas. Naquele Rio de Janeiro que eu e meus amigos viveram, as escolhas eram difíceis, afinal havia poucos empregos, principalmente para nós de classe média, e as perspectivas eram nebulosas para quem não fosse engenheiro, médico, ou coisa parecida. Além de toda a auto afirmação normal de um jovem em busca de aceitação entre seus pares, algo que todos invariavelmente passamos, tínhamos ainda que pensar sinceramente no futuro e lutar para sermos alguém em uma sociedade que experimentava pela primeira vez um verdadeiro choque de capitalismo, sem oferecer as oportunidades que o tornam aceitável. Bem diferente de São Paulo, por exemplo, que já havia muito tempo era o motor da economia.

A mesma perspectiva serve para pensar a Europa dos anos 90. E de certa forma, entender o que está acontecendo com ela agora. Tudo começou ali, nas primeiras gerações perdidas, não pelas drogas, como pode parecer, mas pela falta de perspectiva. No fundo, o vício é uma estatística que representa o nível de anomia de uma sociedade. A depressão da juventude européia como um todo, que em alguns casos descambava para a marginalidade, já estava instaurada desde aqueles tempos “áureos”.

E quando digo perspectiva, não se trata de emprego e uma “big fucking television”. No fundo é “escolher um futuro”, ou ter um para escolher. A Europa já envelheceu, mas outros países caminham na mesma rota. Até a China será velha daqui a uns 20 anos. Talvez todo o sistema que vivemos esteja envelhecido e doente. Dizem que o hedonismo emerge justamente nas sociedades em declínio, como ocorreu no Império Romano. Não surpreende que verdadeiros símbolos do capitalismo estão pouco a pouco quebrando e passando por dificuldades. Quem diria, por exemplo, que a GM passaria tantos apuros?

Por outro lado, emerge uma nova perspectiva com a Internet e a sociedade em rede. Fascinante justamente por ser imprevisível. No fundo, é uma questão para toda a humanidade. Qual é o próximo passo? Quais serão nossas próximas conquistas? Como vai ser o mundo daqui para frente? É preciso sempre escolher, mas escolhas que realmente importam, oferecem alguma dose de novas escolhas e perspectivas. Escolher a vida, o futuro, olhando para frente, como Mark Renton. Quando olhamos para a frente, com sinceridade, não importa verdadeiramente que um dia chegue a morte.

Bogado Lins

Maniqueísmo Profundo

deep throat

Os filmes baseados em fatos reais têm um apelo próprio. Muitos deles não sobreviveriam caso fossem simplesmente narrativas inventadas, mas pelo fato de supostamente retratarem uma realidade, ganham o público. Um verdadeiro golpe baixo, legítimo, por suposto, mas pura covardia. Provavelmente há inúmeras razões para uma narrativa “real” chegar mais facilmente ao público. Cito uma que sempre me pareceu a mais óbvia: estes filmes mostram que a vida é mais fantástica do que parece. Ainda mais para a maioria do público, que por um lado se acomoda no próprio cotidiano, por outro, dispensa o olhar que revela o fantástico do dia-a-dia.

Verdade seja dita, Deus é um péssimo roteirista. A frase é da Duda, minha amiga, mas como Deus é patrimônio público, eu tomo como minha também. Ocorre que a vida é tão fantástica, tão clichê, que às vezes parece má ficção. Observe o cotidiano: assassinatos, ciúmes, paixões, histórias de amor, sexo selvagem, loucura, jogos políticos, guerras, dramas, protestos, prostituição, ação, traições, comédias das mais diversas. Duvido que uma vida inteira se passe sem pelo menos dois ou três destes ingredientes, por mais econômica que seja.

Acabo de assistir Lovelace, filme que trata da vida de Linda e sua trajetória antes, durante e depois de um dos maiores sucessos do cinema, Garganta Profunda.  Ok, cinema pornô, mas se considerarmos que a bilheteria foi digna de qualquer filme de Hollywood, algo o filme teve a oferecer. Teve como alguns dos entusiastas celebridades como Truman Capote, Mike Nichols e foi descrito pela revista Variety como o Ben-Hur do pornô. De fato, o momento que mais me chamou a atenção em todo o enredo foi quando o roteirista declarou com orgulho que haviam 42 páginas de roteiro! Se tudo der errado, eu mando meu portifólio para as Brasileirinhas.

Como falei anteriormente, o fato da história ser “real”, por si só, vale o bilhete. Mas infelizmente, a história oscila dentro de uma narrativa moralista que acaba comprometendo o filme. A história é dividida em dois momentos nítidos, um maniqueísmo explicito, perdoe-me o trocadilho.  Talvez a história fosse mais “real” se misturasse as duas polaridades, desmistificando tanto um lado quanto o outro.  De todo o modo, é importante salientar que provavelmente foi a estratégia mais correta para retratar a história de Linda, tal como ela mesma desejou. O livro Ordeal, que narra o relato da atriz sobre sua própria vida, deve ter sido a base para o roteiro. Ela inclusive foi ativista durante um tempo contra a indústria pornô.

Sem dúvida, o sofrimento dela deve ter sido verdadeiro, considerando que passou por um detector de mentiras para averiguar a autenticidade do seu relato. Porém, algo deve ter sido suavizado no filme, o antes e depois da atriz, considerando que consultas na internet apontam para uma sequência do sucesso e também curtas metragens anteriores, que fazem refletir se a atriz era tão cabaço assim. A todo o momento, parece que Linda era uma menina travessa, mas inocente, que foi levada para o mal caminho. A hipótese não parece se confirmar com pesquisas na Internet a respeito de sua trajetória.

Talvez o maior mérito do filme seja resgatar a história de Linda, que eu mesmo não conhecia, já que nunca assisti pornografia com a perspectiva de um connoisseur. Pouco importava as “atrizes” que figuravam nas poucas películas que assisti do gênero, menos ainda os “atores”. Para falar a verdade, depois de algum tempo misteriosamente sempre estes filmes ficavam desinteressantes. De fato, talvez esta seja a melhor “moral da história”, Linda foi uma atriz, assim como outras do gênero também sejam. Se ela interpretou 42 páginas de roteiro e fez tanto sucesso, teve algum dom. Possivelmente bem mais que muitas de suas supostas pares da Malhação. A arte definitivamente pode estar em qualquer canto, até mesmo enfiada garganta abaixo.

 Bogado Lins