A Europa pode não ser mais tão aspiracional para muitos jovens hoje em dia, mas certamente nos anos 90 era um Eldorado distante que atraía a minha geração e muitas anteriores. Algumas de suas cidades continuam exercendo aquele magnetismo que atrai turistas, olhares e sonhos. Quem não deseja circular pelas ruas de Paris, ou conhecer a noitada de Barcelona, ou ir a pubs em Amsterdam ou Londres? Mas as oportunidades já não são tão atrativas quanto foram, ou pareciam ser, até meados do início do século. Hoje é mais comum os brasileiros irem para estas paragens com aquele ar distante de turista, que após tirar fotos, posar em pontos turísticos e postar no Instagram, retornam para o seu cotidiano com apenas uma ou outra lembrança e a cabeça na próxima viagem para a Indonésia.
Nem sempre foi assim, a Europa como um todo representava um sonho de uma vida melhor para muitos de nós nos idos anos 90. Certamente algumas cidades continuam oferecendo oportunidades, mas veja bem, naquele tempo qualquer país europeu parecia melhor do que o Brasil, em quase qualquer termo de comparação. Brasileiros iam para qualquer canto que fosse, até os considerados mais pobres do continente, em busca de uma vida melhor. Isso sem contar Portugal, um dos países mais pobres do continente, considerado pelos próprios europeus uma amostra da África, e que sempre foi destino natural para os nossos conterrâneos, pela facilidade da língua.
Porém, a tragédia era anunciada, as populações envelheciam e os jovens viviam um mundo à parte. Eram ao mesmo tempo velhos e novos demais. Lembro-me de conhecer estagiárias alemãs e italianas de 30 anos visitando o Brasil, algo absolutamente normal, considerando que os empregos eram de forma geral estáveis e os cargos exercidos por tempo de serviço. Dificilmente um jovem saía da faculdade com emprego na área, algo que obviamente não era tão alarmante levando em conta que a desigualdade social era pequena, qualquer emprego, de faxineiro a físico nuclear, garantia um nível de vida parecido. Quando o jovem não estava empregado, havia os inúmeros beneficio sociais que eram mais do que suficientes para garantir uma vida razoável.
Talvez por essas razões, ou outras quaisquer, a Europa também tinha um outro lado que ao mesmo tempo assustava e atraía: era uma fauna de drogas lícitas e ilícitas. Jovens sem grandes perspectivas profissionais ou contas para pagar, desapegavam das escolhas cotidianas e se afundavam nas drogas. A Holanda mesmo já tem a maconha liberada desde aquela época, mas ela é fichinha comparada com outras histórias que nos chegavam a todo instante. Lembro-me de relatos de praças europeias que eram liberadas para o uso de drogas, se não estou enganado na Suíça e outros países ainda que faziam vista grossa. Desde aquela época a droga já era descriminalizada para usuários em boa parte daqueles países.
A Heroína, por exemplo, era uma excentricidade que praticamente só existia por lá e talvez um ou outro lugar mais retrô dos Estados Unidos. Uma droga cara, feita do ópio, e que oferece um dos vícios mais arrebatadores. Por suas características, estava fadada ao desaparecimento com a emergência do Crack, igualmente viciante e mais barata. Foi sobre a heroína, ou mais precisamente sobre seu vício, que o premiado filme Trainspotting se inspirou para retratar uma geração sem perspectivas da Escócia, “the scum of the Earth” segundo Mark Renton, personagem do enredo.
Naquela época, vivendo no Rio de Janeiro de morros e criminalidade, o filme tinha aspectos que nos fascinavam e intrigavam. Era um contraste absurdo. Para começar, buscar a droga na tal Cidade Maravilhosa nos anos 90, até um reles baseadinho, exigia uma maratona cheia de perigos e conquistas. Como se sabe, as favelas eram palcos de tiroteios constantes, entre policiais e traficantes, e dos traficantes entre si. Vivíamos em uma guerra velada entre duas, mais tarde três, forças do tráfico que pareciam torcidas organizadas. E ainda havia a policia a equilibrar e desequilibrar o jogo, e a oferecer aos usuários o perigo da extorsão ou da prisão em um dos sistemas carcerários mais horripilantes do mundo.
Para nós, jovens do terceiro mundo, aqueles viciados que viviam no Eldorado europeu, eram heróis, mas ao mesmo tempo eram absolutamente ridículos. Como poderiam em um mundo tão ideal serem drogados? “Escolher a vida… mas por que eu iria querer algo assim?”. O que era ridículo neles é o que de certa forma nos fascinavam, tornava a escolha deles ainda mais impactante. A cocaína na época era o que havia de mais radical nas favelas cariocas, nada perto do que um “sincero vício de heroína”. Era um “heroísmo”, perdoe o trocadilho, abandonar tudo como o filme retratava, num mundo que parecia perfeito para um jovem do terceiro mundo. Para que “escolher trabalho, carreira, família, uma merda de uma televisão enorme, maquinas de lavar, carros, cd players(lembre-se anos 90)”? As razões para não escolher? “Para que razões, quando você tem heroína”?
Por um lado, assisti-lo mais de 15 anos depois, o filme é de 96, serviu para compreender porque o amávamos tanto naqueles idos tempos. No fundo, a droga representava, e sem dúvida ainda representa, a dificuldade do jovem em escolher, em última instância, sua sensação de falta de escolhas. Naquele Rio de Janeiro que eu e meus amigos viveram, as escolhas eram difíceis, afinal havia poucos empregos, principalmente para nós de classe média, e as perspectivas eram nebulosas para quem não fosse engenheiro, médico, ou coisa parecida. Além de toda a auto afirmação normal de um jovem em busca de aceitação entre seus pares, algo que todos invariavelmente passamos, tínhamos ainda que pensar sinceramente no futuro e lutar para sermos alguém em uma sociedade que experimentava pela primeira vez um verdadeiro choque de capitalismo, sem oferecer as oportunidades que o tornam aceitável. Bem diferente de São Paulo, por exemplo, que já havia muito tempo era o motor da economia.
A mesma perspectiva serve para pensar a Europa dos anos 90. E de certa forma, entender o que está acontecendo com ela agora. Tudo começou ali, nas primeiras gerações perdidas, não pelas drogas, como pode parecer, mas pela falta de perspectiva. No fundo, o vício é uma estatística que representa o nível de anomia de uma sociedade. A depressão da juventude européia como um todo, que em alguns casos descambava para a marginalidade, já estava instaurada desde aqueles tempos “áureos”.
E quando digo perspectiva, não se trata de emprego e uma “big fucking television”. No fundo é “escolher um futuro”, ou ter um para escolher. A Europa já envelheceu, mas outros países caminham na mesma rota. Até a China será velha daqui a uns 20 anos. Talvez todo o sistema que vivemos esteja envelhecido e doente. Dizem que o hedonismo emerge justamente nas sociedades em declínio, como ocorreu no Império Romano. Não surpreende que verdadeiros símbolos do capitalismo estão pouco a pouco quebrando e passando por dificuldades. Quem diria, por exemplo, que a GM passaria tantos apuros?
Por outro lado, emerge uma nova perspectiva com a Internet e a sociedade em rede. Fascinante justamente por ser imprevisível. No fundo, é uma questão para toda a humanidade. Qual é o próximo passo? Quais serão nossas próximas conquistas? Como vai ser o mundo daqui para frente? É preciso sempre escolher, mas escolhas que realmente importam, oferecem alguma dose de novas escolhas e perspectivas. Escolher a vida, o futuro, olhando para frente, como Mark Renton. Quando olhamos para a frente, com sinceridade, não importa verdadeiramente que um dia chegue a morte.
Bogado Lins